A reafirmação dos princípios da Reforma Psiquiátrica e a liberdade como elemento central dos cuidados dos pacientes da Raps marcaram a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental

Um porto seguro para se manter livre e uma aldeia de esperança contra o estigma. Talvez este aspecto possa definir o que foi a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, um ambiente de reafirmação da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira, esta galvanizada na Lei 10.216, que estabeleceu diretrizes fundamentais para a proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redirecionou o modelo de assistência em saúde mental no país, preconizando a desinstitucionalização, o cuidado em liberdade, a criação de serviços substitutivos ao modelo asilar e a integração social das pessoas com sofrimento mental.

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Foto: Daniel Spirin

Uma observação atenta desta conferência faz pensar como foram possíveis mais de 13 anos de hiato entre a 4ª CNSM e esta, um período de tempo por demais extenso para que um assunto tão sério e urgente como a Saúde Mental em nossa sociedade pudesse esperar. Uma sociedade cada vez mais desigual e geradora de incontáveis problemas socioeconômicos que, por consequência, lançam as pessoas em abismos de pressões e exclusões, elementos propícios ao adoecimento mental, depressões, ansiedades e isolamento.

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Foto: Daniel Spirin

A 5ª CNSM trouxe uma reflexão tão importante quanto a própria existência do Sistema Único de Saúde na sua forma integral, igualitária, equânime: o posicionamento do paciente usuário da rede de assistência psicossocial como o ator principal deste debate e não apenas um objeto de estudo acadêmico. A partir das mais de 600 propostas aprovadas através de intensos e acalorados debates nos grupos de trabalho, fruto de vivências e experiências sobre o modelo de Saúde Mental através da participação e atuação do Controle Social nos estados e municípios, o novo – proposto e aprovado pelas pessoas delegadas – revelou-se ser a defesa das conquistas e garantias dos pacientes, bem como a reafirmação das leis que hoje asseguram o arcabouço legal da SM no Brasil, como diria a ministra Nísia Trindade, durante sua participação na cerimônia de abertura da conferência. Nosso Rio de Janeiro, com sua atenta delegação, não ficaria para trás com suas propostas.

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Sejam eles como querem ser

Correr pelos gramados de Brasília, deitar no chão do saguão principal, gritar e sorrir sem medo de recriminações e olhares de reprovação, estas foram as características daqueles pacientes de Caps que conseguiram não só chegar à 5ª CNSM, mas também opinar, reclamar, elogiar e propor para eles aquilo que uma conferência deve fazer: ouvir os principais interessados nos rumos da Saúde Mental no país e dar voz aos seus anseios. A ativa participação, nesta conferência, dos pacientes usuários da rede (chega de dizer que são pacientes com ‘sofrimento mental’!), é a prova cabal de que o sistema atual da Atenção Psicossocial dá certo e pode continuar.

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Foto: Daniel Spirin

Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde, talvez tenha dado o tom necessário ao abrir a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, quando afirmou que os desafios enfrentados pelo Controle Social para realizá-la se equiparavam à luta daqueles que não esmoreceram durante os anos de chumbo que assolaram o Brasil na Ditadura Militar – 1964/1985. De fato, a pressão das comunidades terapêuticas – muitas delas sob a gerência de grupos religiosos – cada dia mais disputa espaço no orçamento público para a Saúde Mental no Brasil. Ao mesmo tempo, como numa carga incessante contra a Coisa Pública, o sucateamento e desmonte das conquistas históricas do SUS nos dois governos passados mostram que o fator ideológico antagônico ao progresso pega carona no expresso neoliberal via lucro e privatização desenfreada.

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Foto: Daniel Spirin

Pela incansável e intensa luta dos movimentos ligados à luta antimanicomial, conselhos municipais e estaduais de saúde, atores políticos ligados à Reforma Psiquiátrica, movimentos sociais, entidades sindicais e do próprio colegiado do Conselho Nacional de Saúde, a 5ª CNSM também trouxe inovações e intersetorialidades bastante amplas para a melhoria da Saúde Mental. Das 26 propostas levadas à Plenária Final (quando não alcançaram a votação mínima necessária nos Grupos de Trabalho), o destaque foi a recusa ao aumento de repasses e apoios às comunidades terapêuticas, fato que também marcou toda a conferência. Veja a votação completa aqui.

A 5ª CNSM também se revelou um espaço de cultura e abertura para saberes populares, além da participação de ativistas contra o preconceito racial, de idade e de gênero, uma tribuna de vozes eloquentes em defesa das minorias e abertas para integrar o conjunto da sociedade nos caminhos da liberdade com respeito às diferenças.

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Foto: Daniel Spirin

Usuários da rede Raps dão depoimento emocionante sobre a luta pela participação na 5ª CNSM

O já conhecido artista Hamilton, integrante e vocalista de diversos conjuntos musicais e artísticos como o ‘Tá pirando, tá pirado, pirou‘, bloco de carnaval que reúne pacientes e profissionais da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro e Fabiane Helene Valmore, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e bacharel em Ciências Sociais, ambos usuários das redes de Atenção Psicossocial, dariam m um depoimento emocionante sobre suas trajetórias de luta e desafios enfrentados para chegarem até a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental. Fabiane chegou a dizer que a iniciativa das conferências livres abriu as portas para que mais usuários da rede pudessem estar presentes nesta conferência, mesmo enfrentado obstáculos de ordem logística, financeira e os estigmas que ainda persistem sobre os pacientes. Assista.

Bastião de garantias

Se em algum momento os rumos dos serviços de atenção psicossocial no SUS foram colocados em xeque por interesses estranhos à Reforma Psiquiátrica no Brasil, a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental tratou de reafirmar sua potência como motor de correção das distorções que, com o passar do tempo, precisa ser lubrificado através da participação popular democrática.

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Foto: Daniel Spirin

Esta conferência foi uma melodia das histórias contadas e não contadas, das almas que lutam em silêncio e que ganham voz pelo palco da realidade, buscando equilíbrio, paz e vastidão nos recantos da psique. Como um poema inacabado, a Saúde Mental no Brasil tece versos de desafios e superações, onde o amor próprio e o cuidado mútuo em liberdade se entrelaçam em uma dança etérea e fortalecem as vitórias do passado e presente. Domingos Sávio, neurologista e renomado sanitarista brasileiro, postumamente homenageado nesta edição, estaria mais seguro ao saber que a 5ª CNSM venceu ao garantir as normas que dão corpo legal à contínua construção da política nacional de Saúde Mental.

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Foto: Daniel Spirin

Diante do que foi narrado, seria realmente uma loucura esperar mais 13 anos até a 6ª Conferência Nacional de Saúde Mental.

Daniel Spirin Reynaldo/Ascom CES-RJ